Andreia Castro é um nome que, talvez, lhe diga pouco enquanto leitor. Pode não associar imediatamente, mas se dissermos que é a médica que, no início deste mês, fez as malas e rumou a Beirute, no Líbano, por sua conta e risco, para prestar auxílio aos feridos da grande explosão que aconteceu a 4 de agosto, talvez a história já seja um pouco mais familiar. É ela a nossa personagem principal de hoje.
“Dimensão da explosão” e as suas consequências foram o ímpeto
Nas últimas semanas, Andreia Castro, de 34 anos e natural de Oeiras, tem sido notícia em inúmeras publicações por, sem a retaguarda de qualquer instituição, ter rumado ao Líbano para ajudar no pós-explosão. À conversa com o Populus, e mais de uma semana depois de ter regressado, Andreia diz que continua «sem conseguir explicar completamente a forma como as coisas se passaram».
Depois do sucedido, «começaram logo a circular as imagens da explosão, eu estava de serviço [médica de profissão], mas aquilo mexeu logo muito comigo. É impressionante a dimensão da explosão», começa por lembrar. No entanto, afirma que foi no dia seguinte, de folga e em casa, «completa e constantemente exposta àquilo que se estava a passar no Líbano», através das notícias, que começou a pensar no que «estaria a ser feito» uma vez que, devido à sua formação, percebeu que, tendo em conta o tipo de explosão, «teria causado muitos feridos, nomeadamente relacionados com estilhaços de vidro». Este raciocínio foi a chave para entender, de facto, em que poderia ser útil: «Eles iam precisar de muita mão de obra para suturar feridos. Eu não sou anestesista, não sou cirurgiã, não sou emergencista sequer, mas eu podia ajudar…», recorda.
O passo seguinte foi contactar instituições para que pudesse voluntariar-se, porém os problemas foram em maior número do que as soluções. «Liguei para o Ministérios dos Negócios Estrangeiros, para a Cruz Vermelha, para os Médicos Sem Fronteiras, para o INEM… E todas estas instituições ou estavam ainda a organizar-se ou foram muito perentórias em dizer que eu não seria elegível para uma iniciativa destas, uma vez que eu, não só nunca tinha colaborado com as instituições, como também, a nível do INEM, nunca tinha feito uma coisa a que eles chamam Curso de Hospital de Campanha», conta, acrescentando que nada disto era possível de fazer em tempo útil para que pudesse embarcar nesta aventura em conjunto com estas entidades.
Deixou-se ficar ainda um dia em stand-by. Porém começaram a chegar novas notícias: «O Governo [libanês] recusou ajudas internacionais. Na quinta-feira [a explosão decorreu a uma terça-feira], soube-se oficialmente que não seria necessária ajuda internacional e, portanto, todas as entidades ficavam à espera até mudança de planos ou diretivas», refere. Sempre em contacto com um amigo a morar no país, diz que houve um momento em que simplesmente decidiu ir.
20 quilómetros de destruição e as vassouras como armas
Habituada a viajar sozinha – já vamos a essa parte da história! –, conta que «nas horas antes de comprar o bilhete», as suas principais preocupações «eram os compromissos que tinha assumido em termos de trabalho; e a COVID-19, porque previa-se, e está a acontecer, que houvesse um aumento do número de casos» na zona afetada. Todavia, durante a semana em que passou em Beirute, as situações que vivenciou não eram possíveis de prever.
«Aquilo que se vê é, efetivamente, uma linha reta de 20 a 25 quilómetros em que está tudo praticamente destruído. À medida que nos afastamos, a destruição vai sendo progressivamente mais pequena, mas nos primeiros quilómetros é total. Vê-se verdadeiramente tudo destruído, devido à grande massa de ar que levou tudo à frente. Nos primeiros quilómetros, tudo o que é caixilharias, vidros e madeiras, desapareceu… Olhamos para dentro dos edifícios e não percebemos se aquilo eram escritórios ou habitações…», revela. Além disto, «o bairro principal ficou sem eletricidade».
Quando chegou, quatro dias depois do desastre, o que viu foram «pessoas a mobilizarem-se a elas próprias no sentido de limparem a cidade com vassouras»: «Tenho dito muitas vezes que a arma daquela gente tem sido, sem dúvida, a vassoura. Organizaram-se para limpar a cidade, montaram tendas e oferecem comida e água a quem vão encontrando. E à noite, nos primeiros dias, saíam à rua à procura de feridos ou pessoas que precisassem de ajuda», conta. Andreia Castro refere que «durante todo o tempo» em que esteve no Líbano, não viu «qualquer ação governamental». «É um Governo que foi muito negligente numa série de aspetos, com uma sociedade que tem muitos problemas a nível social, económico e político. Já tinham muitas dificuldades ultimamente e agora, com esta situação, foram deixados completamente por sua conta», considera.
Da teoria à ação
«Logo a seguir a pousar as malas, fui para a zona de conflitos, que era a Praça dos Mártires», avança. O passo seguinte foi dirigir-se às várias ambulâncias no local, apresentar a sua cédula profissional e mostrar-se disposta para ajudar. Ao longo do dia, os conflitos agravaram-se, «foi o dia máximo de manifestações no Líbano», e Andreia acabou mesmo por colaborar com algumas ambulâncias da Cruz Vermelha. «Não estava preparada para o tipo de situação que ia encontrar», admite. Foi nesse mesmo dia que teve a sua primeira experiência com gás lacrimogéneo: «Fiquei logo knocked-out durante uns minutos, para aí duas ou três vezes», lembra.
Depois desse primeiro impacto, o trabalho de Andreia Castro passou pela visita a hospitais para perceber quais as suas maiores necessidades, com o objetivo de contribuir com material comprado com dinheiro recolhido numa angariação de fundos que tinha já organizado através da sua página de Instagram. «Gastei 500 dólares em 40 litros de desinfetante e mias 500 em máscaras cirúrgicas para médicos que estavam a lidar diretamente com doentes infetados com COVID-19», informa. Começou, então, a perceber que todos os produtos eram «extremamente caros» e que todo o dinheiro que usava lá «era muito pouco expressivo em termos da quantidade de bens que permitia adquirir».
Por investir tudo o que tinha em material e devido a um problema que teve com as transferências vindas de Portugal, Andreia Castro ficou sem dinheiro. «Comecei a ficar muito limitada naquilo que estava a fazer. Estive por vários momentos a zeros. Andava à boleia de pessoas que ia conhecendo ou de pessoas que me levavam a casa no final do dia, e comia aquilo que iam dando na rua», recorda. Quando finalmente voltou a ter dinheiro, começou a aperceber-se de que «não valia a pena estar a fazer compras lá». Foi então através de uma sondagem no Instagram, onde está a maioria das pessoas que fez as doações, que decidiu aplicar o dinheiro em Portugal e enviar, depois, os produtos para Beirute.
20 toneladas de material para Beirute
A 15 de agosto regressou a Portugal e desde então que já contactou com cerca de uma centena de entidades diferentes, para pedir donativos de material hospitalar e medicamentos, «com listas oficiais» que lhe foram fornecidas no Líbano. Os donativos em dinheiro também são possíveis, mas a finalidade é exatamente a mesma, comprar produtos de saúde que possam contribuir para ajudar os hospitais e os feridos libaneses. Os donativos em dinheiro servirão também para comparticipar as passagens de Andreia no seu regresso ao Líbano, que deve acontecer no próximo dia 3.
Esta segunda viagem serve para entregar material prioritário, recolhido e organizado por um grupo de cerca de 30 voluntários que se juntaram a Andreia nesta causa. A somar a tudo isto, a Associação Romã Azul, portuguesa, disponibilizou-se «a pagar a 100% o custo do envio de um contentor daqui para Beirute»: «Temos um contentor de 20 a 30 toneladas que vai seguir a partir do momento em que estiver cheio. A viagem vai demorar 21 dias e eu própria estarei lá para receber o contentor e ter a certeza de que nada é desviado na alfândega. A grande prioridade neste momento é encher o contentor, porque quando mais depressa o fizermos, mais depressa as coisas chegam», conclui.
O mundo das viagens
As pistas já foram sendo deixadas, mas agora trazemos a confirmação: não, esta não foi a primeira vez que Andreia Castro partiu sozinha em viagem. Claro que esta teve contornos que nenhuma outra teve, mas do seu currículo constam já cinco meses na América do Sul, dois no Havai e mais três meses a trabalhar num cruzeiro nas Caraíbas, todas elas sozinha. E estas são apenas as de maior duração…
«Para mim, sair de Portugal pelo menos uma ou duas vezes por ano é algo que acontece desde que sou muito nova», revela. Entre intercâmbios, participações em programas Erasmus, e estudar fora do país, o bichinho das viagens nunca parou de crescer.
Passada a fase das viagens com os pais, começou a viajar com amigos, mas depois, por força das circunstâncias, começou a ser complicado organizarem-se para viajarem juntos. Por isso, aventurou-se na sua primeira experiência sozinha: «Fui sozinha cinco dias para a Eslovénia e correu tão bem, foi uma coisa tão natural…», recorda, acrescentando que a partir daí, não mais temeu a ideia de se poder sentir «desacompanhada».
Em 2017, por sentir que o trabalho a limitava no estilo de vida mais nómada que gostava de ter e, «se calhar, por estar numa fase de burnout por estar a trabalhar em muitos sítios», decidiu despedir-se para fazer aquilo de que mais gosta. Foi também nesse ano que criou o blogue Me Across the World (que podemos visitar aqui) onde conta todas as suas experiências.
Não é capaz de escolher “a” viagem porque acredita que todas elas a marcam de uma forma diferente, dependendo da fase da vida em que está e do que está a sentir no momento. Porém, nem a COVID-19 a impediu de fazer planos: «Em setembro vou para Itália e depois, em novembro para a Jordânia. Se tudo correr bem, quero ver se termino o ano nas Filipinas».