Marli Silva, de 28 anos, é natural de Condeixa-a-Nova e atriz de formação. Esta arte corre-lhe nas veias desde que se lembra de existir e quase desde a mesma altura que luta por cumprir os seus sonhos. Pelo caminho surgiram contrariedades que a levaram a emigrar e a regressar; e adversidades que, por porem em causa a sua saúde, a levaram a lutar, todos os dias. A alegria de viver é uma das imagens de marca de Marli e nesta história espelha-se isso mesmo…
Desde que se lembra de si
«Lembro-me de mim sempre a pensar no teatro, em ser atriz, a gostar muito de ir ao teatro, a ver muita televisão, nacional principalmente. Vejo, ainda hoje, imensas novelas e teimo em ver, também para acompanhar o que vai sendo feito na área», começa por contar Marli Silva. Com apenas 9 anos iniciou a sua formação, no Teatrão, em Coimbra, e quando chegou ao ensino secundário começou a fazer escolhas que a levavam ao futuro que planeava. Entrou no curso tecnológico de Ação Social, escolhendo a vertente de animação por ser «a mais ligada ao teatro», uma vez que naquela cidade «não havia nenhum curso profissional de Teatro».
Marli confessa que foi nesta altura que começou a ponderar ter um plano B, uma licenciatura noutra área, a que se pudesse “agarrar” caso não conseguisse fazer carreira no teatro, «mas não dava»: «Acho que ia ser muito infeliz se o fizesse, então as minhas opções para entrar na universidade foram todas em Teatro, nem podia ser de outra forma», revela. Foi essa a escolha que a levou a Vila Real, para estudar Teatro e Artes Performativas na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Em Vila Real, «não tinha nenhuma referência, não conhecia a cidade, não conhecia nada», diz ter ido à descoberta e ter sido a «melhor escolha» que fez. Quanto à formação, classifica-a como «muito boa» e acredita que foi «graças ao curso» que conseguiu «muita coisa». «Tive a possibilidade de ir a um festival internacional de teatro que foi, para mim, uma das experiências mais incríveis de sempre. Conheci pessoas da televisão que, uns mais do que outros, me deram uma experiência completamente diferente de um ator de teatro, não que seja melhor ou pior, mas completamente diferente. Fiz uma curta-metragem com o Marcantónio Del Carlo…», revela, entusiasmada, acrescentando que, a partir daí, «por sair de uma universidade com uma licenciatura em Teatro, foi muito mais fácil a nível de conhecimento e experiência. Não quer dizer que quem não tem curso não saiba, mas é uma mais-valia», afirma.
O mercado de trabalho e a emigração como resposta
Marli terminou o curso «a bater com a cabeça nas paredes», uma fase que, acredita, muita gente tem, por não saber o que ia ser o seu futuro nem por onde começar na busca por oportunidades de emprego. Com os pais a viver na Suíça, Marli excluiu de imediato a opção de viajar para junto deles.
Por sugestão da mãe, foi, juntamente com uma colega e amiga, Diana Lima, viver para Condeixa-a-Nova, onde os pais tinham uma casa desocupada. Chegadas ao berço de Marli, arranjaram trabalho como animadoras e monitoras de crianças, porém as dificuldades começaram a aparecer: o trabalho era em Coimbra e os transportes entre os dois concelhos eram inexistentes à noite; o ordenado começava a não suportar as despesas… «Um dia, estávamos a falar com os meus pais via Skype, a falar da situação que estávamos a viver. Eles disseram para irmos lá experimentar. “Vêm visitar-nos, ficam uma semana, depois regressam e pensam na vossa vida”», recorda, avançando que, nesse dia, decidiram logo ir sem viagem de regresso marcada. «Foi uma maluqueira pegada, fomos com uma bagagem de mão, em pleno inverno, para um país de neve. Foi uma aventura», afirma.
O embate que sentiram ao chegar não foi exatamente o que esperavam. Sem saber falar a língua, tinham como objetivo «ficar algum tempo, juntar dinheiro e vir embora». Porém cedo perceberam que iam com «uma ideia falsa, que talvez muita gente tenha», achavam que «na Suíça se faz muito dinheiro», mas perceberam que não. «A Suíça é um país muito caro, tem muitas regras, muitos impostos, tem um seguro de saúde que é obrigatório e que é caríssimo… Para as pessoas que foram para lá nos últimos anos, é muito difícil arranjar trabalho porque há muita gente à procura, e se tu não queres, há mais 30 à espera», conta Marli.
Ainda pensaram em fazer animações para os portugueses a viver no país, e chegaram mesmo a ter uma experiência numa festa que ocorreu num centro português. No entanto, o balanço que fizeram foi de que «os portugueses lá não estavam recetivos à animação, às pinturas faciais…» e, portanto, a ideia acabou quase por “morrer à nascença”. Perceberam também que, «na Suíça, há teatro mas é muito elitista, muito caro, não é para toda a gente e televisão é muito pobre». Marli assume que foi «a primeira a “atirar a toalha ao chão”» e a dizer que «queria vir embora». «Em menos de um ano estávamos em Portugal novamente. Prefiro estar no meu país a contar os tostões, mas com um sorriso na cara, do que estar aqui [na Suíça]», atira.
O seu nome inscrito na História local
Desde que saiu da universidade, Marli integrou a Oficina de Teatro de Condeixa que, na altura, era uma das vertentes de outra associação local. Fez uma pausa, enquanto estava na Suíça, mas assim que regressou voltou a ocupar o seu lugar. As experiências profissionais que tanto Marli como Diana Lima foram tendo, fizeram com que começassem a traçar o objetivo de tornar a Oficina independente. «Na altura, a Câmara de Condeixa ofereceu-nos [a si, a Diana e a Rafael Graça, que já conhecemos noutra história do Populus, aqui] uma formação de Gestão de Organização de Projetos Culturais, para irmos aprender e criarmos a nossa associação», começa por contar Marli, explicando que na associação a que pertenciam, não eram «nada independentes», nem em termos financeiros, nem nas atividades em que queriam ou podiam participar.
Depois de conhecida a burocracia, na qual Diana Lima foi, segundo Marli, «o crânio», era preciso dinheiro para levar o projeto em frente. «Fizemos “vaquinhas”, a pedir dinheiro às pessoas… Foi na Suíça [quando estavam os três de férias] que conseguimos uma valente parte do dinheiro, num jantar que tivemos com a minha família», lembra Marli, que salienta que, quando contaram, começaram os três a chorar por perceberem que tinham dinheiro não só para abrir a associação, mas também «para comprar os livros de atas, cada um custava uns 30 euros…». Marli, Diana e Rafael assinaram “o papel” e, por isso, têm «o nome cravado para sempre» na história da associação e até do próprio concelho.
A Oficina fez já três anos e, de acordo com a atriz e também encenadora, tem cada vez mais atores e mais de uma centena de sócios. Dão aulas a duas turmas nas escolas, fazem animações, as peças próprias – pelas quais as pessoas «estão constantemente a pedir mais» –, atividades de Natal, de férias, «tudo o que é possível». Marli diz que acredita «muito na qualidade da Oficina, na qualidade das pessoas, no empenho delas» e que apresentam uma peça «apenas quando está pronta e bem feita».
10 horas de operação e 11 centímetros a mais
Marli Silva nasceu com escoliose dorsal lombar e com duplicação de um rim. O problema de coluna foi detetado quando tinha apenas dois anos. Aos 6, Marli começou a usar um aparelho, uma vez que a escoliose estava a progredir demasiado rápido. «Usei-o durante quatro anos. Era de ferro, muito pesado, preso com porcas e parafusos. Tinha sempre na mochila uma caixinha de ferramentas, caso fosse preciso tirar, caso saltasse uma porca, porque de vez em quando, a brincar, as porcas saltavam. Felizmente os meus avós e os meus pais tinham uma loja de ferragens, portanto a coisa facilitava-se bastante por aí», brinca, como faz aliás com todas as adversidades com que se vai debatendo. Ao fim desses quatro anos, os médicos concluíram que o aparelho estava «a fazer ainda pior» e tiraram-no, «precisamente na altura em que os meninos e as meninas dão aquele pulo de crescimento e descontrolou-se tudo». «Foi quando fiquei internada pela primeira vez. Estive internada quase dois anos, aos bocadinhos. Tinha aulas no hospital, fazia a minha vida no hospital, de vez em quando vinha passar os fins de semana a casa. E estava no hospital para estar sempre ligada à medicação porque as dores eram terríveis, eu chegava a desmaiar com a dor», lembra. Foi este o caminho que a levou à primeira operação, com 13 anos, em junho de 2005. A intervenção durou 10 horas. «Entrei para a operação com 1,55 metros e saí com 1,66, e os médicos não conseguiram esticar-me a coluna toda», revela.
Pouco depois de regressar da Suíça e exatamente 10 anos depois da primeira operação, Marli estava a trabalhar «cheia de dores de costas»: «Até enviei uma mensagem para a Diana a dizer que a minha coluna estava a lembrar-me que fazia 10 anos que tinha sido operada», conta. As dores permaneceram mais uns dias e, depois, chegou a febre. Uma ida ao médico revelou que o corpo de Marli estava a rejeitar os ferros colocados na primeira operação. «Os médicos não me queriam operar, diziam que o risco de eu ficar numa cadeira de rodas era imenso», recorda. Quando finalmente encontrou um ortopedista que aceitasse o desafio, este disse-lhe que os ferros tinham que ser retirados porque estavam a criar uma infeção.
Foi operada quatro meses depois. «Eu tinha várias bolsas ao longo da coluna, com pus», adianta. Fez, assim, a sua última operação em dezembro de 2015 e, desde então, a sua coluna «piorou um bocadinho». Continua a ser vigiada e há a possibilidade de, daqui a alguns tempos, poder ter de ser de novo operada, a «pior operação de todas»: «Basicamente, vão ter que me partir a coluna toda e voltar a montá-la tipo puzzle. Eu adoro puzzles, mas este acho que não queria», revela.
Sempre lidou bem com o problema… Até há pouco tempo. «Só recentemente é que comecei a ter complexos com a coluna», conta. «Vejo-me ao espelho e a minha postura está cada vez pior, estou cada vez mais curvada, cada vez mais torta», no entanto, sabe que «mais vale estar torta a andar, do que direitinha numa cadeira de rodas», atira. E conclui: «Sou uma jovem de 80 anos ou uma idosa de 28, depende, porque no inverno doem-me os ossos, se vai chover, doem-me os ossos…».
«Nunca tive medo da palavra cancro»
No ano passado, descobriu «um caroço na mama» e quando teve a confirmação de que era cancro, sempre foi «positiva»: «Nunca deitei uma lágrima, não por me fazer de forte, mas porque é uma mama, se fosse uma perna era pior. Isto tira-se, põe-se e pronto», explica. Inicialmente, a operação era a solução apresentada, mas depois foram também necessários seis meses de quimioterapia e cinco anos de hormonoterapia, que já iniciou.
Diz que «a palavra cancro» nunca lhe «meteu medo». «Isto não é fazer-me de forte. Os meus amigos e a minha mãe diziam: “Marli, chora. Marli, fala.”. Mas eu não tenho nada para falar, tenho cancro, corta-se, tira-se e está bom. Agora, já tenho cabelo, as minhas sobrancelhas já estão a crescer, as coisas aos poucos vão-se ultrapassando», afirma.
Mesmo em termos de auto-estima, afirma que o cancro não a afetou, mas acredita que, daqui a uns tempos, pode «bater um bocadinho». O motivo é estético, mas é mais profundo do que isso. «Estou sem soutien desde maio, tenho o peito grande, e quando fui ao médico da Cirurgia Plástica, perguntei se quando fizesse a reconstrução, podia fazer alguma coisa à outra mama. Perguntei até se não era possível tirar também essa e colocar duas plásticas. É uma plástica de beleza, mas acho que é importante, quando eu tenho 28 anos, não tenho namorado, ainda não constituí família, é estética, mas é auto-estima também», confessa. «Vou ter que viver com uma mama a olhar para a frente e outra a olhar para baixo?», brinca. Acha que, por enquanto, aceita melhor por não ter uma das mamas, do que quando «tiver cada uma para seu lado, chateadas uma com a outra», ri.
Ao contrário do que se pudesse pensar, nada disto derrota Marli. Vive de sorriso na cara e enfrenta as contrariedades o melhor que sabe. Tem um trabalho que adora, como animadora no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra, e faz-se rodear de gente boa. As viagens de Marli vão continuar, à conquista do mundo, com o seu trabalho e a sua boa disposição.